É parte de um rito pessoal. Não me importam localizações de padarias, supermercados, bancos, shoppings ou papelarias. Para que eu conheça uma cidade, de verdade - ao menos na minha consideração -, eu preciso me sentir seguro para caminhar por suas ruas de madrugada. Não poderia ser diferente aqui, em Araraquara.
É um hábito perigoso, será? Vou refletindo sobre isso enquanto escolho um banco para me sentar. Chovera forte mais cedo àquela noite. Eu fiquei até preocupado. Estava me aprontando para ir ao cinema com uma colega de classe, enquanto começou uma ventania forte. Parecia que o fim do mundo tinha começado justo aqui, em Araraquara. Mas isso é só a minha mania de desejar que o fim do mundo chegue logo, não pela expectativa de que tudo se destrua, mas é que eu já estou cansado de cumprir papéis que não me cabem. Queria tirar a minha fantasia de homem, e um apocalipse seria o cenário ideal para isso.
Os bancos estão todos molhados. Eu dou um jeito e sento ainda assim, tentando me molhar o mínimo possível. Observei à lateral, a Igreja. Nunca entrei lá dentro. Também, ela não me parece tão atraente quanto a Igreja Santa Cruz, ou a Igreja Matriz. Ao redor, as raízes aéreas das árvores revelam a maestria da natureza que me cerca. Desesperada, buscando sustentar seus galhos grossos e largos a todo custo. Em um cenário urbano e imundo como aquele, toda a biosfera está lutando para sobreviver apesar de todas as adversidades. E eu também faço parte disso.
Eu puxo o celular e tento bater alguma foto. Inútil. Sua bateria está tão fraca que não consigo registrar nada. Aborrecido, entendo que só tenho a minha memória para consultar. Faço anotações mentais. Consulto outros arquivos do passado e me deparo com outras madrugadas que passei nas ruas. Eu sempre me senti seguro para caminhar nas madrugadas de Jardim da Penha, mas aquela noite em peculiar, foi diferente. Eu sentei ali, observando a Igreja, enquanto recordava.
Devia ter sido em meados para final de abril, desse ano mesmo, 2013. Eu fui passar um final de semana corrido em Vitória. Cheguei na sexta-feira, e logo fui me encontrar com um caro amigo de longa data. Lanchamos em uma casa de lanches, depois fomos à casa dele, bater papo madrugada a dentro. Quatro da manhã, eu decidi que era hora de ir para casa, descansar. Eu poderia ter ligado para meus pais e pedido carona, mas não o fiz. Eu estava ansioso para andar outra vez madrugada a dentro.
Desde que sai da casa do meu amigo, eu comecei a sentir uma sensação estranha. Talvez fosse uma certa insegurança, afinal, faziam alguns meses que eu não me aventurava mais na minha cidade natal. Não dei tanta importância, mas me mantive alerta. Eu bem sei, nada de ruim pode me acontecer sem que eu saiba e essa sensação era a do tipo que eu aprendi a perceber para me proteger. Mas nem mesmo isso me segurou. Se fosse um perigo demasiadamente grande, eu perceberia com maior intensidade. Eu relevei o perigo eminente, com aquele pensamento arrogante, típico da minha essência: "Eu sou um Mago! O que poderia me acontecer de errado?"
Tudo. Só tudo de errado. Ele chegou na contra-mão. Eu não percebi ele chegando, mas ao que parece, ele virou a esquina assim que me viu. Era um carro branco - desculpe, não entendo nada de modelos ou marcas -, virou a esquina e veio na minha direção. Parou, desceu o vidro, e um homem de cabelos loiros na altura do pescoço, olhos fundos de insônia, me abordou. Com licença, você pode me explicar como chegar em Jardim Camburi?, - disse ele. Eu contorci a boca para o lado, revirei os olhos e respondi que ele estava longe de Jardim Camburi, mas não era complicado chegar lá. Cheguei mais perto e tentei explicar para ele como chegar na praia. Mas ele me cortou e tentou me oferecer carona:
_Onde você mora? Entra ai que eu te deixo em casa e dai você me mostra onde fica.
_Não, eu moro aqui perto, no bairro ao lado. Mas veja, se você virar a próxima esquina e seguir reto, você chega na praia, e dai, vira à esquerda e vai reto. Reto, até passar um matagal e...
_É sério, você pode me explicar no caminho, só me deixe te levar em casa. Entra ai!
Eu acabei aceitando a carona. Já estava próximo à porta do carona, quando do canto da minha mente me veio o pensamento: "Você perdeu o juízo, Fausto? Aceitar carona de um desconhecido, no meio da madrugada?", mas o EGO magista não me deixou dar ouvidos a isso. Eu estava convictamente convencido de que eu era intocável, infalível na arte oculta de não permitir o mal a me atingir:
_Então cara, você sabe onde eu posso encontrar uma parada assim, tipo, pó, tá ligado? - Eu engoli seco.
_Ah sim, é. Esse tipo de coisas você consegue arrumar por lá mesmo. Sim. Então. Se você for lá, acho que essas coisa você arruma fácil, fácil. É, tem esse tipo de coisa por lá mesmo. Não é difícil encontrar e... Siga em frente e vire aquela esquina à direita. - Ele segue a minha instrução sem perceber.
_Pois é cara, eu sou de Goiânia, é o meu último dia aqui em Vitória. Você poderia vir comigo, não é? A gente ainda tem o resto da noite, vamos lá, nos divertir sabe? Vamos fazer alguma coisa juntos.
_Ah cara, acontece que, sei lá. Eu já passei a noite inteira com um brother meu, então, eu estou cansado. Eu prometi aos meus pais que eu iria voltar cedo, eu também cheguei de viagem aqui em vitória hoje, é, eu também moro longe. E eu não sei se estou afim de fazer mais nada, eu só quero descansar e... encoste o carro ali naquela calçada. - Outra vez, ele "obedece".
Ele para o carro, vira para mim e começa a fazer uma espécie de beicinho. Explica que é a última noite dele em Vitória, diz que ele nunca mais vai ter outra oportunidade de me ver, e então solta uma clássica:
_É sério cara, deixa eu dar uma onda em você!
Sim, foi ai que caiu a ficha de verdade. Ele queria me drogar e comer a minha bunda. Eu admito que tenho uma senhora bunda, mas isso não justi.. Sim, justifica sim. Justifica muito ele ter me visto de costas, e ter virado a esquina enfurecido, na contra-mão, em minha direção:
_Olha cara, já está tarde, e eu num acho que é uma boa ideia, eu já estou muito cansado e - eu enrolava ele enquanto tentava abrir a porta, foi então que percebi que a porta só destravava do lado dele - eu já deveria estar em casa, além do mais, quando você chegar lá você vai... fazer o favor de abrir a porta pra mim cara?!
_Ah, opa, sim. Desculpe. - Ele destrava a porta.
Eu abro a porta e estou de saída, quando ele me agarra pelo braço mais uma vez e me olha, fazendo beicinho, e repetindo: "É sério, deixa eu dar uma onda em você". Eu olho para ele, sério. Não falo nada, apenas liberto meu braço, saio do carro, fecho a porta e, aproveitando que a janela está aberta, abaixo o tronco e apoio o ante-braço na porta, a outra mão no capô. Ironicamente, a minha posição sobre o carro, é bem similar a das prostitutas abordando um potencial cliente:
_Então, presta atenção. você segue reto nessa rua e você vai parar na praia. Chegando na praia, você vira à esquerda e segue reto. Segue, até você passar um matagal à sua esquerda, e chegar em uns quiosques. Chegando lá você vai encontrar uns travestis e eles vão te dar TUDO o que você está querendo para essa noite.
Ele ainda insistiu mais uma última vez. Eu agradeci e disse que não. Levantei o tronco, dei duas batidinhas no capô do carro e ele foi embora. Eu atravessei a rua e fiquei atento para ver qual caminho ele iria tomar. Ele foi direto pelo caminho que eu indiquei, felizmente (ou não).
Caminhando meio apressado, finalmente, todas as sensações chegam. O coração começa a bater acelerado no peito, minhas costas tensionam em nervosismo. Eu sou assim. No momento do aperto, todas as minhas sensações e emoções se anulam. Passado o momento de risco, o medo, a ansiedade e o nervosismo chegam. É um mecanismo que desenvolvi depois de muitas, mas muitas, situações de extremo risco por qual eu já passei. Essa história que eu contei, em comparação ao que já enfrentei antes, pareceria tão ameaçadora quanto uma criança de cinco anos com uma espada de plástico.
Foi brincadeira de criança mesmo, eu assumo. Quando eu percebi do que realmente se tratava, e qual eram as intenções dele, eu não tive tempo sequer de raciocinar e comecei a hipnotiza-lo da forma mais agressiva possível. Algumas técnicas simples e práticas de mesmerismo. Se eu tivesse de ter usado essas técnicas por muito mais tempo, era possível que, ou ele enlouquecesse, ou a hipnose não surtiria mais o efeito necessário para me livrar do risco. Mas eis o meu mal, excesso de confiança.
Talvez seja por isso que eu não tenho medo de caminhar pela madrugada. Eu sei que nenhum mortal, nenhum humano em carne, poderia representar real perigo comparado ao que eu já enfrentei. Talvez eu caminhe pela noite procurando a minha morte. Procurando qualquer desafio que me faça questionar, qualquer perigo que me faça entender: por que meu coração de gelo não se intimida, mesmo em face ao pior terror?
Eu levanto do banco da praça e vou caminhando para o condomínio. Entro na kitinete e sinto aquele bafo. O ambiente passou muito tempo fechado, o ar sem circulação. Abro a janela do quarto e a bascula do banheiro. Vou dormir pensando nela. Não nela, sobre quem você está pensando, mas sobre outra. Qual outra? Enfim, esquece. Boa noite.
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Então pessoal, eu decidi escrever uma narrativa dessa vez, para variar um pouco. Escrever apenas dissertações e dissertações argumentativas é um pouco monótono demais. Então pra dar uma variada, eu resolvi escrever uma narrativa. Com o detalhe de que, nenhuma linha que eu escrevi aqui é ficcional. Sim, absolutamente tudo o que eu relatei aconteceu de verdade. Caso vocês já tinham dúvidas quanto à sanidade do autor desse blog, podem ter certeza agora. Ele é louco de pedra! Até a próxima!
Dessa eu não sabia.....
ResponderExcluirMas vc realmente tem problemas.....rs