"É preciso a coragem de ser um caos para gerar uma estrela dançarina." - F. Nietzche.

domingo, 14 de junho de 2015

Reação em Cadeia



No dia seguinte, todos os jornais liam a mesma manchete: “Foi aprovada a lei do Eletrochoque Compulsório!” Medida inédita naquele país, muitos foram os questionamentos quanto à constitucionalidade de tal lei, mas nada pôde impedir a sua instauração. “Passou no congresso, está aprovada”, bradaram alguns.

Todo cidadão a partir dos dezoito anos – opcional a partir dos sessenta anos – deverá dirigir-se diariamente a um posto policial para receber uma descarga elétrica de trezentos volts. Aqueles que se recusarem a comparecer para a aplicação da “injeção”, serão multados em relação ao acumulo de faltas. Extrapolando o limite de dez faltas mensais, além da multa, o meliante arriscará passar um dia na delegacia, como medida de advertência. Para o caso de recorrência ou, se persistir a abster-se das descargas flagelantes, o cidadão será conduzido ao julgamento, arriscando ser detido por períodos que variam de três meses a cinco anos.

A opinião pública recebeu mal essa notícia. Afinal, quem, em sã consciência, enfrentaria uma fila gigante para cumprir suas obrigações cidadãs de levar um choque?!  Os jornais de oposição apontam para a má administração do partido da situação, que permitiu que tal medida fosse aprovada no congresso, sem antes, consultar a opinião pública: “Eles não querem diálogo!”, reclamavam. Mídias concorrentes apontavam para o eletrochoque como um recurso de correção e justiça social: “Pela primeira vez em nossa história, ricos, pobres, pardos, homens e mulheres receberam tratamento igualitário e indiscriminado ante o aparelho do Estado. É um marco de igualdade, uma igualdade que representa a opressão sofrida pelas minorias e que, agora, será sentida e vivenciada por todas as camadas da sociedade....”, o melodrama prosseguia sem freio.

Em sua primeira semana de implementação, a inadimplência foi de 80%. As enormes filas em horários de rush dificultavam a aplicação do choque. Afinal, fazia-se necessário um uso de uma aparelhagem especial para certificar a segurança dos cidadãos. A descarga não poderia passar pelo coração, pelo risco de provocar paradas cardíacas.  Com isso, optaram por colocar um cinto condutor na cintura e luvas de metal, para dissipar melhor a descarga sem deixar de infringir, poderosa, DOR! Todo esse equipamento exigia manutenção e higienização entre cada aplicação. O contingente mobilizado para esses desígnios precisou ser reforçado, e isso enfraqueceu a frota de policiais na rua.

Temendo o fracasso da nova Lei e um possível surto de criminalidade, o Presidente convocou uma reunião extraordinária para buscar soluções. Apesar de a receita apontar para um aumento de arrecadação, devido à ausência massiva às “câmaras de choque” – como foram chamados os postos de eletrochoque – o Presidente se preocupava com a sobremobilização das forças policiais. Decidiram, então, dividir o encargo com outros setores estatais, tais como os bombeiros, a marinha, o exército e até mesmo hospitais!

Na semana seguinte, os cidadãos tinham outros postos preparados para atenderem ao choque. Tal, contudo, não sanou o problema das filas enormes, apesar de reduzir a abstenção para 35%. Todos reclamam de ter de buscar as câmaras de choque, fosse antes de ir trabalhar, fosse depois do trabalho. Apenas quem tinha horários alternativos de trabalho e estudo poderia frequentar esses postos e encontrá-los com um fluxo desimpedido.


Os jornais de oposição atacaram novamente: “Os serviços prestados pelo Estado são sempre precários e ineficientes. Deveriam liberar os eletrochoques para a rede privada!”. Em contraparte, outros argumentavam que entregar “a dor do povo” nas mãos dos empresários, seria uma medida ultraje e moralmente reprovável: “Se eles já exploram o trabalhador todos os dias, imagina se tiverem o poder de lhes aplicarem choques? Vão é fazer do choque o novo chicote, como dos tempos da escravatura!”

Todos tinham seus argumentos, mas depois de muita pressão, o governo aprovou uma ementa para permitir que postos privados de choque fossem permitidos. Fixou-se também uma taxa nacional para a cobrança por um eletrochoque. E quem pagaria para receber um choque desses? Quem estivesse disposto a pagar pela comodidade de não enfrentar filas no setor público. Algumas empresas passaram a oferecer o serviço de choque para os seus empregados, descontando em 1% o salário dos trabalhadores que aceitassem aderir a essa “facilidade”. Foi a gota d’água!

Vários sindicatos se mobilizaram para enfrentar com unhas e dentes a medida invasiva do eletrochoque. Queriam o fim de tal medida? Não. Não sonhavam tão alto. A princípio, exigiam que o choque fosse restringido para os dias úteis da semana. Em segundo, exigiam que as empresas deixassem de descontar do salário dos funcionários, pois eles percebiam como essa medida era uma facilidade para o empregador, muito mais do que para o empregado. Afinal, por poderem receber o choque dentro do local de trabalho, eles não precisariam se atrasar, nem sair mas cedo, para receber o choque em um posto oficial do Estado.

Foi uma semana de intensa luta e protesto. Para a vantagem da causa, as forças armadas não puderam mobilizar relevante parte de seu contingente para controlar as manifestações, pois já estavam muito ocupadas, intercambiando entre manter as ruas seguras e aplicar choque nas pessoas.

Uma vez assegurados esses direitos, a luta não interrompeu. Eles pretendiam, agora, diminuir a voltagem do choque para duzentos e vinte volts, bem como, montar uma CPI para fiscalizar os registros dos postos privados de choque. Suspeitava-se que a nata da sociedade estava pagando apenas para que fossem registrados os choques, sem necessariamente receberem a dolorosa descarga em suas carnes.

Atingiram a marca dos duzentos e quinze volts, para além das expectativas! Muito comemoraram o drástico abrandamento da dolorosa obrigação. Quanto às CPIs, em nada resultaram. Contudo, as repartições públicas passaram a adotar a medida das empresas privadas e começaram a aplicar as descargas em seus funcionários.

Depois de cinco meses de choques compulsórios, setores mais radicais dentro do espectro político, ainda desejavam erradicar essa obrigação absurda imposta pelo Estado. Mas eles também almejavam derrubar o próprio Estado, portanto, muitos argumentavam que essa era uma oposição utópica, sem fundamento com a realidade. O hipotético sucesso da medida, que gozava de índices de abstenção cada vez menores – atingindo a invejável marca de 3% de ausências semanais – fez da dor cotidiana um bom negócio em curto prazo, mas um prejuízo a longo alcance.

Suprir com a demanda de tantas descargas elétricas simultâneas quase levou o país a uma crise energética. A conta de luz aumentou, em detrimento dos novos investimentos que se fizeram necessário no setor energético: usinas hidroelétricas, usinas termelétricas, parques eólicos... Uma solução emergencial foi reduzir ainda mais a voltagem das descargas: cento e cinquenta e cinco volts. Além da proposta de diminuir a frequência exigida para os choques, para apenas três vezes por semana. Disfarçaram essa medida como um benefício benevolente, buscando mascarar a crise energética iminente.

Com mais dias livres da obrigação, os sindicatos e movimentos sociais propuseram um esquema de revezamento para receberem choque. Para tanto, passou a permitir-se levar choques aos sábados. Assim, metade de população receberia o choque na segundas, quartas e sextas-feiras; a outra metade ficaria com as terças, quintas e sábados.

O clima de tensão inicial parecia aliviado. Mas não parou por aí. Percebendo a vantagem e a comodidade de não depender de horários ou de filas; surgiram empresas especializadas no ramo dessa obrigação chocante. Passaram a comercializar instalações domiciliares: uma versão caseira das câmaras de choque. Com o preço nas alturas, no primeiro ano de seu lançamento, era um artigo de luxo. Passados três anos, tornou-se comum como um telefone fixo – já era artigo indispensável para toda família brasileira de classe média. Alguns adiavam o sonho de comprar um novo carro, pelo conforto de receber choques dentro de casa, no âmago familiar.

Há de se imaginar que o leitor tome essa narrativa por pitoresca, absurda e ridícula. Quem se submeteria a vergonhosa infâmia de pagar para aplicarem-lhe cargas elevadas de sofrimento sem sentido? Se lhe impressiona essa realidade paralela, acho direto que para o seu juízo, saiba: os habitantes deste país imaginário ficaram abismados ao tomarem conhecimento de que, num outro mundo, pessoas compram aparelhos eletrônicos que emitem luz, deterioram as vistas e conduzem, lentamente, à falência do cérebro, e levam essas máquinas assassinas para dentro de casa.

Cada um com suas incongruências. Boa noite. Passar bem!

terça-feira, 9 de junho de 2015

A Angústia do Real


"A ideia de um conhecimento neutro e objetivo está completamente ultrapassada. Nos dias atuais, descobrir é inseparável de inventar e de criar." - Jorge Luiz Veschi

Duvidar é terrível. Quando a mente encontra-se assim, nua, desprotegida, encarando o mundo real, a tormenta se instala. Nada senão o pensar pode aplacar o seu efeito. Até que outro choque com o real nos traga abaixo, atormentados pela irritante insistência do real.

Desejamos dominar o real por meio da linguagem, mas não creio que exista código rigidamente preparado para essa tarefa. Ao menos, não em valores absolutos. A melhor concepção do real é aquela que não busca firmar autenticidade para o seu discurso, mas humildemente reconhece sua impropriedade ante ao objeto que almeja alcançar.

É um verdadeiro exercício de sincera hipocrisia que cometo em utilizar um código para criticar e apontar sua ineficácia, mas não é esse o verdadeiro valor da linguagem? Discursar sobre seus limites é o melhor que esse sistema, fechado, pode fazer. Falar, eventualmente, torna-se um exercício de tautologia. Uma vez que os valores mais essenciais à definição dos objetos mais elementares do discurso, não passam de ficções da linguagem.

“A verdade não pode ser dita. Se for dita, não é verdade.” – Lao Tzu

Sujeito? Eu? Pressupõe-se, muito etnocentricamente, que existe uma concordância intrínseca à relação símbolo e objeto referido. Como a se a criação do primeiro validasse existência do segundo. A meu ver, isso é pura ingenuidade. O objeto não fala de si, pois sua existência basta. Do contrário, não existiram tantos códigos a lhe atribuir nomes, símbolos e formas pensamento. Todos imprecisos e incongruentes em definir a mais simples verdades, por serem evidentemente as mais intangíveis a uma “objetividade” fracassada de berço.
“O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.” – Alberto Caeiro

Podem me chamar de ingênuo, herege, mas creio que a experiência humana possa transcender a linguagem para além dos códigos em que nos circundamos. Talvez não exista experiência sem linguagem, mas com certeza existem experiências sem nome e que, independente de signos que a descrevam, atingem o e afetam o sujeito.

Se tal, seria essa a salvação tão almejada? A nulidade da mente é a não linguagem? Não tão depressa. A necessidade de compreender a própria experiência é uma das limitações do EGO – ele não sobrevive à ausência de um significado para atribuir-se, para imbuir-se de valor.

É possível que a angústia defronte o real se dê pela perturbação que o real provoca em nosso aparelho anímico, que por sua vez, é incapaz de traduzir a realidade de forma fiel sem afetá-la ou transformá-la. Com isso, a observação de qualquer objeto acarreta na produção do mesmo. E quanto mais nos esforçamos por observar e compreender os diferentes objetos, mais nos distanciamos deles para, por fim, criarmos representações distorcidas do real. Assim nasce o “conhecimento”, a cultura, o saber secular.

Cruelmente, é assim que encerro a minha prosa: vazia de sentido e de perspectivas. Pois é assim que escolhi encarar o eterno confronto com o real, assumindo a inevitável derrota. Muito provavelmente, esse é apenas outro julgamento temporário, uma conclusão a que me dirigi por meio da “lógica” e, portanto, que passou pelo mesmo prisma da razão e do conhecimento distorcido sobre o real a que me dediquei a dissertar aqui. Que mais posso fazer?

“O que é Deus senão o homem observando a força do Kaos? Para ele nada é verdadeiro; tudo é permitido. Ali não há propósitos em sua existência; ele é um livro para escolher a si mesmo.” – Petter Carrol