No dia seguinte, todos os jornais liam a mesma manchete: “Foi
aprovada a lei do Eletrochoque Compulsório!” Medida inédita naquele país,
muitos foram os questionamentos quanto à constitucionalidade de tal lei, mas
nada pôde impedir a sua instauração. “Passou no congresso, está aprovada”,
bradaram alguns.
Todo cidadão a partir dos dezoito anos – opcional a
partir dos sessenta anos – deverá dirigir-se diariamente a um posto policial
para receber uma descarga elétrica de trezentos volts. Aqueles que se
recusarem a comparecer para a aplicação da “injeção”, serão multados em relação
ao acumulo de faltas. Extrapolando o limite de dez faltas mensais, além da
multa, o meliante arriscará passar um dia na delegacia, como medida de
advertência. Para o caso de recorrência ou, se persistir a abster-se das
descargas flagelantes, o cidadão será conduzido ao julgamento, arriscando ser
detido por períodos que variam de três meses a cinco anos.
A opinião pública recebeu mal essa notícia. Afinal, quem,
em sã consciência, enfrentaria uma fila gigante para cumprir suas obrigações
cidadãs de levar um choque?! Os
jornais de oposição apontam para a má administração do partido da situação,
que permitiu que tal medida fosse aprovada no congresso, sem antes, consultar a
opinião pública: “Eles não querem diálogo!”, reclamavam. Mídias concorrentes
apontavam para o eletrochoque como um recurso de correção e justiça social: “Pela
primeira vez em nossa história, ricos, pobres, pardos, homens e mulheres
receberam tratamento igualitário e indiscriminado ante o aparelho do Estado. É
um marco de igualdade, uma igualdade que representa a opressão sofrida pelas
minorias e que, agora, será sentida e vivenciada por todas as camadas da
sociedade....”, o melodrama prosseguia sem freio.
Em sua primeira semana de implementação, a inadimplência
foi de 80%. As enormes filas em horários de rush dificultavam a aplicação do choque.
Afinal, fazia-se necessário um uso de uma aparelhagem especial para certificar
a segurança dos cidadãos. A descarga não poderia passar pelo coração, pelo
risco de provocar paradas cardíacas. Com
isso, optaram por colocar um cinto condutor na cintura e luvas de metal, para
dissipar melhor a descarga sem deixar de infringir, poderosa, DOR! Todo esse
equipamento exigia manutenção e higienização entre cada aplicação. O
contingente mobilizado para esses desígnios precisou ser reforçado, e isso
enfraqueceu a frota de policiais na rua.
Temendo o fracasso da nova Lei e um possível surto de
criminalidade, o Presidente convocou uma reunião extraordinária para buscar soluções. Apesar de a receita apontar para um aumento de arrecadação, devido à
ausência massiva às “câmaras de choque” – como foram chamados os postos de
eletrochoque – o Presidente se preocupava com a sobremobilização das forças policiais.
Decidiram, então, dividir o encargo com outros setores estatais, tais como os
bombeiros, a marinha, o exército e até mesmo hospitais!
Na semana seguinte, os cidadãos tinham outros postos
preparados para atenderem ao choque. Tal, contudo, não sanou o problema das
filas enormes, apesar de reduzir a abstenção para 35%. Todos reclamam de ter de
buscar as câmaras de choque, fosse antes de ir trabalhar, fosse depois do
trabalho. Apenas quem tinha horários alternativos de trabalho e estudo poderia frequentar esses postos e encontrá-los com um fluxo desimpedido.
Os jornais de oposição atacaram novamente: “Os serviços
prestados pelo Estado são sempre precários e ineficientes. Deveriam liberar os
eletrochoques para a rede privada!”. Em contraparte, outros argumentavam que
entregar “a dor do povo” nas mãos dos empresários, seria uma medida ultraje e
moralmente reprovável: “Se eles já exploram o trabalhador todos os dias, imagina
se tiverem o poder de lhes aplicarem choques? Vão é fazer do choque o novo chicote, como dos
tempos da escravatura!”
Todos tinham seus argumentos, mas depois de muita pressão, o governo aprovou uma ementa para permitir que postos privados de choque fossem permitidos. Fixou-se também uma taxa nacional para a cobrança por um eletrochoque. E quem pagaria para receber um choque desses? Quem estivesse disposto a pagar pela comodidade de não enfrentar filas no setor público. Algumas empresas passaram a oferecer o serviço de choque para os seus empregados, descontando em 1% o salário dos trabalhadores que aceitassem aderir a essa “facilidade”. Foi a gota d’água!
Vários sindicatos se mobilizaram para enfrentar com unhas
e dentes a medida invasiva do eletrochoque. Queriam o fim de tal medida? Não. Não sonhavam tão
alto. A princípio, exigiam que o choque fosse restringido para os dias úteis da
semana. Em segundo, exigiam que as empresas deixassem de descontar do salário
dos funcionários, pois eles percebiam como essa medida era uma facilidade para
o empregador, muito mais do que para o empregado. Afinal, por poderem receber o
choque dentro do local de trabalho, eles não precisariam se atrasar, nem sair mas cedo, para receber o choque em um posto oficial do Estado.
Foi uma semana de intensa luta e protesto. Para a
vantagem da causa, as forças armadas não puderam mobilizar relevante parte de
seu contingente para controlar as manifestações, pois já estavam muito ocupadas, intercambiando entre manter as ruas seguras e aplicar choque nas pessoas.
Uma vez assegurados esses direitos, a luta não
interrompeu. Eles pretendiam, agora, diminuir a voltagem do choque para
duzentos e vinte volts, bem como, montar uma CPI para fiscalizar os registros
dos postos privados de choque. Suspeitava-se que a nata da sociedade estava
pagando apenas para que fossem registrados os choques, sem necessariamente receberem a dolorosa descarga em suas carnes.
Atingiram a marca dos duzentos e quinze volts, para além
das expectativas! Muito comemoraram o drástico abrandamento da dolorosa
obrigação. Quanto às CPIs, em nada resultaram. Contudo, as repartições públicas
passaram a adotar a medida das empresas privadas e começaram a aplicar as
descargas em seus funcionários.
Depois de cinco meses de choques compulsórios,
setores mais radicais dentro do espectro político, ainda desejavam erradicar essa
obrigação absurda imposta pelo Estado. Mas eles também almejavam derrubar o
próprio Estado, portanto, muitos argumentavam que essa era uma oposição
utópica, sem fundamento com a realidade. O hipotético sucesso da medida, que
gozava de índices de abstenção cada vez menores – atingindo a invejável marca
de 3% de ausências semanais – fez da dor cotidiana um bom negócio em curto
prazo, mas um prejuízo a longo alcance.
Suprir com a demanda de tantas descargas elétricas simultâneas quase
levou o país a uma crise energética. A conta de luz aumentou, em detrimento dos
novos investimentos que se fizeram necessário no setor energético: usinas
hidroelétricas, usinas termelétricas, parques eólicos... Uma solução emergencial foi reduzir ainda mais a voltagem das descargas: cento e cinquenta e
cinco volts. Além da proposta de diminuir a frequência exigida para os choques,
para apenas três vezes por semana. Disfarçaram essa medida como um benefício
benevolente, buscando mascarar a crise energética iminente.
Com mais dias livres da obrigação, os sindicatos e
movimentos sociais propuseram um esquema de revezamento para receberem choque. Para
tanto, passou a permitir-se levar choques aos sábados. Assim, metade de
população receberia o choque na segundas, quartas e sextas-feiras; a outra metade ficaria
com as terças, quintas e sábados.
O clima de tensão inicial parecia aliviado. Mas não parou por aí.
Percebendo a vantagem e a comodidade de não depender de horários ou de filas;
surgiram empresas especializadas no ramo dessa obrigação chocante. Passaram a
comercializar instalações domiciliares: uma versão caseira das câmaras de
choque. Com o preço nas alturas, no primeiro ano de seu lançamento, era um
artigo de luxo. Passados três anos, tornou-se comum como um telefone fixo –
já era artigo indispensável para toda família brasileira de classe média.
Alguns adiavam o sonho de comprar um novo carro, pelo conforto de receber
choques dentro de casa, no âmago familiar.
Há de se imaginar que o leitor tome essa narrativa por
pitoresca, absurda e ridícula. Quem se submeteria a vergonhosa infâmia de pagar
para aplicarem-lhe cargas elevadas de sofrimento sem sentido? Se lhe impressiona
essa realidade paralela, acho direto que para o seu juízo, saiba: os
habitantes deste país imaginário ficaram abismados ao tomarem conhecimento de
que, num outro mundo, pessoas compram aparelhos eletrônicos que emitem luz,
deterioram as vistas e conduzem, lentamente, à falência do cérebro, e levam
essas máquinas assassinas para dentro de casa.
Cada um com suas incongruências. Boa noite. Passar bem!