Citação recorrente em debates políticos, geralmente, de natureza etno-fóbica, por vez ou outra cruzamos caminho com certos cidadãos de bem. Homens trabalhadores, crianças e mulheres de família direita, humanos humanamente dignos e corretos. Incapazes de cometerem crimes, eles merecem a proteção do estado e da polícia contra o bandido do morro.
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Tirinha do Andre Dahmer - Malvados |
É curioso imaginar o que serviria de apoio para sustentar uma tese tão puritana, quanto tal que defende uma classe de indivíduos super virtuosos e de índole inquestionável, que teriam mais direitos do que qualquer outra classe de cidadãos. Falta pouco pedirem o direito de serem clientes preferenciais em mercados e ganharem os primeiros acentos em show e exposições: "Abram alas para os cidadãos de bem!". (E assim estende ao chão um tapete vermelho - vermelho de sangue dos bandidos do morro)
O conservadorismo está permeado de justificativas filosoficamente coerentes para suas atitudes e posturas claramente racistas e preconceituosas. Clamam cláusulas da constituição, citam versículos para defender a moral e bons costumes, mas se esquecem que o mundo prático é infinitamente distante do mundo idealizado pelo velho (e novo) testamento e pela constituição de 1988.
Quando um cidadão de bem defende pena de morte para bandidos, ou vociferam contra o modo humanitário como bandidos e criminosos são tratados pela trupe dos direitos humanos; eles não percebem - ou fingem que não percebem -, mas estão apoiando um genocídio etno-cultural. É fácil perceber como quando eles mencionam bandido, a imagem que lhes vêm em mente é de um homem negro, classe média-baixa, morador de periferia ou favela, pés descalços ou chinelo, bermuda velha/suja, camisa do flamengo/sem camisa e que aponta uma arma para um cidadão de bem indefeso.
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Cidadão de bem gosta de fazer justiça com as próprias mãos. |
Diariamente os cidadãos de bem são bombardeados nos noticiários com imagens de notícias que reforçam constantemente o esteriótipo do bandido pobre favelado. Faz até parecer que a tendência à bandidagem é por culpa da cor ou condição social. Existem sim, os favores de risco social que facilitam e até mesmo tragam os jovens da periferia e da favela para se aliarem ao tráfico ou outras facções criminosas: Difíceis condições de estudo, falta de oportunidades de emprego, coercitividade do meio, para citar apenas alguns fatores de risco. Porém, não é sobre isso que quero falar aqui, mas sobre a face oposta, o pseudo-puritanismo dos cidadãos de bem.
Trago em pauta um caso famoso da minha região natal, Vitória ES. Araceli Cabrera Crespo, 9 anos incompletos, foi dopada com LSD, estrupada, violentada, dilacerada a dentadas e teve seus restos mortais desconfigurados com ácido, para dificultar a identificação.
Voltando um pouco a fita, no dia 18 de maio de 1973, Araceli saiu mais cedo da escola, a pedido da mãe, que escrevera um bilhete para a professora. A menina se dirigiu então a um edifício levando um envelope que continha — sem que ela soubesse — drogas para serem entregues a um grupo de rapazes, conhecidos por realizarem orgias regadas a narcóticos e álcool. Uma vez na mão dos rapazes, ela não teve escapatória.
Entre os líderes do grupo, citam-se dois nomes de famílias influentes da região, Paulo Constanteen Helal, o Paulinho, e Dante de Brito Michelini, o Dantinho. Burgueses, soberbos, mantinham apartamentos na região da cidade exclusivamente para fazerem suas festas noturnas agitadas e recheadas de narcóticos, orgias e ocasionais ultraviolências; como a do caso Araceli.
Depois de muito suborno, paitrocínios e tentativas de julgarem o caso, os réus permanecem praticamente impunes, salvo um breve período de poucos meses que passaram na cadeia. É um caso emblemático de impunidade e cumplicidade das instituições do Estado para com a mórbida crueldade da high-society. Outros diversos casos de rapazes de classe média alta que saem de madrugada com o carrão do papai, junto com mais três amigos marombeiros e aproveitam para espancar um mendigo ou uma empregada no ponto de ônibus, são algumas vezes noticiados. Mas qual será a verdadeira frequência de casos de criminalidade, brutalidade e violência que vêm das classes superiores e não das classes subalternas?
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Charge de Carlos Latuff sobre o helicóptero cheio de cocaína de um deputado do PSDB |
A justiça ainda julga sob diferente peso e medida um crime cometido por um milionário e o mesmo crime (em menor escala) cometido por um favelado. Enquanto esse parâmetro não for à justo e medida, haverão aqueles que acreditam que roubar e matar são atitudes exclusivas de traficantes do morro, mas ignoram a corrupção dos empresários e dos ladrões do colarinho branco - infinitamente mais mortais e prejudiciais do que ladrões de galinha ou pão da padaria.
A teoria criminalística comprova: 99% dos crimes não são reportados ou noticiados. Todos os cidadãos haverão de infligir a lei, mais dia ou menos dia. Não existe atestado de bom mocismo. Não existe uma classe de indivíduos que sejam imunes a julgamentos criteriosos. O esforço para se manter justo deve ser diário, contínuo.
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